João Cezar de Castro Rocha: “Literatura não é transmissão de conteúdo”

Premiado no Brasil e com uma trajetória acadêmica impecável lá fora, o presidente da Associação Brasileira de Literatura Comparada (Abralic) diz que não dá fugir desse chavão: “Não seremos nunca uma nação de cidadãos plenos enquanto não constituirmos um país de leitores.!"


O modo com que o ensino da Literatura é tratado no Ensino Médio é, frequentemente, apontado como um dos grandes responsáveis por afastar os jovens brasileiros da leitura de livros literários. Qual é o caminho das pedras, na sua opinião?

R) Na verdade, o problema da Literatura no Ensino Médio não é exclusivo, porém um sintoma de um problema mais geral – eis a hipótese que proponho para nosso diálogo. Em outras palavras, a forma de ensino é anacrônica, pois parece excessivamente centrada na transmissão de conteúdos determinados; que muitas vezes são conteúdos definidos pelo programa de futuros vestibulares ou concursos. Assim, o ensino torna-se uma função paradoxalmente voltada para uma prática exterior à atividade pedagógica. No caso da Literatura, essa forma anacrônica de ensino revela sua face menos favorável, e explicarei em que medida o ensino atual tende a um anacronismo responsável pelo seu insucesso. Vejamos. Ora, se em disciplinas como, por exemplo, História, Biologia, Química, Geografia e Matemática, é possível imaginar um conteúdo mínimo, digamos, “fixo” e, sobretudo, razoavelmente “consensual”, o mesmo dificilmente pode ser dito em relação à Literatura. A razão é simples, mas decisiva: o texto literário, por definição, resiste à fixidez de sentidos e à determinação de um conteúdo indiferente à recepção; pelo contrário, a experiência literária é múltipla e reitera o provérbio: cada cabeça, uma sentença; cada leitura, uma interpretação. Dessa hipótese derivo uma proposta, qual seja, no Ensino Médio a Literatura, denominação sisuda, engravatada, deveria ser pensada como uma experiência literária, vale dizer, vivência lúdica, reconhecimento pleno da narrativa como um jogo propriamente interativo.
                 
Porque, afinal, a literatura se faz tão necessária em cada um dos níveis de ensino na educação brasileira?

R) Eis uma pergunta difícil – e, como toda questão complexa, decisiva. Esboço uma resposta arriscando outra hipótese. O universo digital, ninguém ignora, produziu – e, como se trata de um processo em curso, segue produzindo – transformações cognitivas consideráveis, especialmente entre os mais jovens, ou seja, as alunas e os alunos do Ensino Médio! Ora, hoje, todo jovem com acesso ao mundo novo das redes sociais já chega à escola com certas funções altamente desenvolvidas. Pensemos em algumas: facilidade de encontrar informações em plataformas as mais diversas; habilidade de lidar simultaneamente com fontes múltiplas; intensidade na assimilação de dados; capacidade associativa muito próxima à estrutura do hyperlink; disponibilidade (lúdica) para os atos de leitura e de escrita. Nesse horizonte – e veja que não pretendo ser exaustivo! – salta aos olhos o anacronismo, ingênuo, de uma pedagogia que ainda se baseie na transmissão de um conteúdo determinado e em boa medida estável. Mas nem tudo são apenas traços, digamos, “positivos”, pois, como os apocalípticos não se cansam de reiterar, as mesmas funções que assinalei possuem um lado, por assim dizer, “obscuro”. Aí se encontram a superficialidade na assimilação de dados, a virtual impossibilidade de concentração num único tópico, a dificuldade de resistir à simultaneidade como tempo único da interação social e a ansiedade na obtenção de respostas e resultados imediatos. Hora de arriscar minha hipótese. Vamos lá. Compreendida como experiência literária, portanto, resgatando o caráter lúdico e interativo que se encontra na origem do ato narrativo, o ensino de Literatura possui um potencial que, salvo engano, ainda não foi devidamente explorado. Esse tema leva longe... Por ora, limito-me a recordar um traço indissociável da experiência literária, isto é, o ato de leitura de textos literários demanda a vivência de um tempo próprio, irredutível à simultaneidade da interação imediata propiciada pelo universo das redes sociais. Esse tempo outro, se não for dissociado de seu caráter lúdico e interativo, talvez seja a forma mais incisiva e contemporânea de superar a ideia do ensino como transmissão de conteúdo.

O MEC acaba de anunciar uma padronização dos formatos dos livros de literatura que promete voltar a comprar a partir de 2019. Isso é realmente um problema?

R) Seria fácil criticar a medida, pois, sem dúvida, tal iniciativa incide no equívoco, anacrônico, de reduzir o ensino exclusivamente à transmissão de conteúdo. Mas tal crítica não pode ignorar um fato elementar da ordem da administração pública, qual seja, a fim de lançar mão de recursos públicos é indispensável especificar, em edital, uma padronização mínima. Reconhecendo esse dado concreto, vale a pena ressalvar que a compreensão da potência da experiência literária não foi adequadamente explorada – e não apenas neste atual governo. O mais importante, no entanto, é que a padronização não seja dominada por critérios exclusivamente de conteúdo.

Para onde caminham nossas políticas públicas do livro, leitura, literatura e bibliotecas?

R) As políticas públicas no Brasil – e não apenas as relativas ao livro, à leitura, à literatura e às bibliotecas – infelizmente sofrem de um mal crônico: a falta de continuidade. Se, no plano político, tal prática leva por vezes a uma paralisia da administração, e certamente a um lamentável desperdício de recursos, no plano da cultura ela possui efeitos devastadores. Não seremos nunca uma nação de cidadãos plenos enquanto não constituirmos um país de leitores. A frase é um lugar-comum, reconheço, mas, aqui, no sentido clássico, isto é, deveria ser parte do repertório coletivo.

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