Biblioteca Mário de Andrade mostra acervo raro de jornais e revistas



Há cerca de um mês, 9.200 títulos da hemeroteca (acervo de jornais e outros periódicos) ganharam um anexo exclusivo
No fim da década de 40, as histórias de amor da revista carioca Grande Hotel, espécie de fotonovela em desenho, faziam suspirar as adolescentes e donas de casa. Graças aos quadrinhos adaptados de livros estrangeiros como Almas Acorrentadas e Amor sem Esperança, chegou a circular com 220.000 exemplares mensais. Considerada uma raridade, a publicação integra o arquivo de 9.200 títulos da hemeroteca (acervo de jornais e outros periódicos) da Biblioteca Municipal Mário de Andrade.

Há cerca de um mês, esse tesouro, reunido desde 1935, ganhou um anexo exclusivo, no número 125 da Rua Doutor Bráulio Gomes, no centro, em frente ao edifício principal da Biblioteca. A maior vantagem da mudança foi centralizar as pilhas de encadernações, que nos últimos anos mudaram diversas vezes de endereço e chegaram a ficar divididas em até três lugares ao mesmo tempo.

A reforma do prédio custou 15,2 milhões de reais à prefeitura. No espaço térreo, o visitante é recebido por painéis com capas de revistas antigas. É o caso de Esfera, sobre artes cênicas, lançada no Rio de Janeiro em 1938. O 1º piso abriga exposições — atualmente, está em cartaz Ridendo castigat mores (“rindo, castigam-se os costumes”,segundo a máxima romana), com fotos e caricaturas.

Nos três pavimentos seguintes há o atendimento ao público. Além do acervo físico, é possível consultar agora em dois computadores as versões digitais de 24 revistas da Editora Abril. Isso se tornou viável por meio de um acordo entre o iba (a banca virtual da Abril) e a Biblioteca Mário de Andrade. Do 6º ao 15º andar, onde estão as 2.000 prateleiras, a circulação fica restrita aos dezesseis funcionários do anexo.

No antigo serviço, a capacidade de atendimento era bem limitada: apenas três pessoas por dia. O novo prédio pode receber até sessenta usuários. A consulta gratuita aos volumes deve ser solicitada por telefone ou e-mail. É preciso informar o nome da publicação e o período a ser pesquisado. Os funcionários têm prazo de até cinco dias para responder se o material está disponível e agendar a visita.

Quando o pesquisador chega, os jornais ou revistas já estão separados em um dos lugares das bancadas e mesas, enão podem ser removidos. Trata-se de um cuidado com a preservação das folhas, pois parte do patrimônio — como as edições do jornal O Estado de S. Paulo da época da II Guerra — sofreu desgaste devido ao manuseio excessivo. “O Notícias Populares, tema de alguns estudos acadêmicos, também ficou com vários problemas”, diz a bibliotecária Izabel Maria da Silva, que zela pelos periódicos há oito anos.

Entre outras tarefas, ela participa da higienização feita página a página, organiza e cataloga as coleções. Só ao fim desse levantamento, aliás, será possível dizer quantos exemplares há no total da coleção. Na última contagem, em 2006, eram 3 milhões. Desde a inauguração, o anexo recebeu cerca de 450 pessoas, em geral para trabalhos acadêmicos.
 A historiadora Mirela Hernandes tem ido lá nos últimos dias para consultar cadernos de 1990 a 1993 da extinta Gazeta Mercantil. Ela busca boletins do mercado financeiro para completar a coleção do Centro de Memória da BM&FBovespa, onde trabalha. “Mas as notícias velhas são tão curiosas aos olhos de hoje que, às vezes, eu me desconcentro”, admite. “Por exemplo: um texto de duas décadas atrás informava que a telefonia móvel dificilmente deslancharia no país.”
 Há também casos mais peculiares, como o do administrador de empresas Rodolfo Pedro Stella Junior, de 55 anos, que está organizando para um “estudo pessoal” as fichas técnicas de todos os clubes participantes das 44 edições da série B do Campeonato Paulista. “Comecei o levantamento há mais de dez anos, mas ainda faltam muitos dados”, conta. Sua esperança é preencher as lacunas com informações encontradas nas páginas de A Gazeta Esportiva, que circulou entre 1947 e 2001.
Hemeroteca da Biblioteca Mário de Andrade. Rua Doutor Bráulio Gomes, 125, centro. Agendamento: 3775-1401 e hemerotecabma@prefeitura.sp.gov.br
 

Céu, inferno

Marisa Midori Deacto*
 
 
A catalogação se difunde na era de Gutenberg. Uma verdadeira galáxia, mas uma seção de biblioteca não se destina a compor o mapa celestial de raridades
  Os catálogos de bibliotecas surgem do empenho de compilação, em um só livro, de todos os volumes que uma coleção comporta. Dir-se-ia, uma biblioteca sem paredes.
 A prática da catalogação se difunde na era de Gutenberg. Uma verdadeira galáxia composta por nomes de autores, títulos, formatos, notas biobibliográficas… nem sempre apresentados nessa ordem e com os mesmos critérios de seleção, absorveu a vida de muitos bibliotecários e bibliófilos.
 Todavia, apenas uma seção da biblioteca não se destinava a compor este mapa celestial de raridades.
 As bibliotecas tinham seu inferno. Os livros repousavam em espaços reclusos, nos desvãos das estantes, ou em salões instalados por detrás de paredes falsas, ou ainda sob o rés do chão das mansardas. O inferno das bibliotecas desafiava a imaginação dos arquitetos mais engenhosos e a fantasia dos proprietários mais endinheirados. O século 18 é pródigo nessas assimetrias e ilusões arquitetônicas. A noção mesma de intimidade conduz nobres e burgueses às recepções reservadas no boudoir e às leituras na solidão desses espaços. Imagens de leitores e leitoras do grande século francês testemunham bem este dolce far niente literário.
 Adentrando o inferno, o que encontramos? Pensemos na cena célebre do primeiro encontro de Julien com Mathilde. A bela heroína de O Vermelho e o Negro adentra furtivamente na biblioteca do pai através de uma passagem secreta. Deslumbrado, o jovem provinciano observa Mathilde em sua incursão perigosa, enquanto seus dedos ligeiros percorrem as obras completas de Voltaire. Há, no entanto, títulos mais frívolos que fariam enrubescer os dois jovens. Entre memórias ardentes, contos de fadas eróticos, jogos rocambolescos, ensinamentos sobre a arte de amar, nada escapa aos autores, leitores e censores.
 A era do capitalismo de edição fez do inferno da biblioteca um negócio providencial. Em 1852, a polícia apreendeu  12 mil volumes em posse das Edições Garnier. Entre os títulos: A Educação de Laure, Amores e Galanteios das Atrizes, Libertino de Qualidade, Messalina Francesa, Os Males da Virtude.
 Inferno para uns, paraíso para outros. Arte da dissimulação de autores consagrados, entre Stendhal, Musset, Gautier, Maupassant, Cocteau, Aragon, para ficarmos apenas entre os franceses contemporâneos, o gênero foi responsável pelo aparecimento de edições bem cuidadas, verdadeiras obras artísticas, síntese do que de melhor havia em termos de encadernação e ilustração (finas gravuras em metal, ou no Oitocentos, belas litografias), sem dispensar, é claro, a boa tipografia impressa sobre papéis nobres. Mais do que a erotomania, a economia da literatura erótica se tornou objeto da bibliomania.
 
*Professora da ECA-USP. Autora de O Império dos Livros: Instituições e Práticas de Leituras na São Paulo Oitocentista (São Paulo: Edusp, Fapesp, 2011, 448 pp.). Prêmio Sérgio Buarque de Holanda da Fundação Biblioteca Nacional, 2011; Prêmio Jabuti, 2012.

Para ler mais,
http://bibliomania-divercidades.blogspot.com.br/


Fonte: http://www.revistabrasileiros.com.br