Precisamos TOCAR nesse assunto



 A caligrafia e a leitura ameaçadas na era touch screen. 


Não foi a roda, a energia elétrica ou outra invenção do gênero a maior criação do Homem. Na verdade, o objeto mais importante que as mãos humanas geraram é bem mais simples e mais essencial que qualquer tecnologia: o livro. Pois através dele o conhecimento foi transmitido e a cultura e sociedade se formaram. A escrita foi, e é, parte fundamental para o progresso da espécie tanto do ponto de vista evolutivo (como raça) como também do ponto de vista social (como indivíduo). Vale lembrar também que foi um livro, chamado Bíblia, que teve papel decisivo no pensamento cartesiano e nos modelos de diversas linhas filosóficas que ditam a moral e ética das nossas vidas. Isso nos mostra o poder deste objeto na humanidade e indica a intrínseca ligação que existe entre a linguagem, pensamento e cognição. Hoje o livro está um pouco de lado pelo fato de termos outras plataformas para trabalhar a escrita e disseminar o conhecimento. Tablets, e-books, smartphones e até mesmo a tela dos monitores ganham mais espaço e isso levanta uma nova questão, mais biológica, que foi pouco explorada e começa a ser vista com maior importância.

Pesquisadores começaram a se atentar a algo que professores já tinham percebido em seus alunos há algum tempo: a forma como escrevemos tem relevância no desempenho. Trabalhos feitos à mão tinham rendimento superior aos feitos por caracteres. A transição do papel para o digital tem sido grande e cada vez mais cedo e isso começa a preocupar principalmente os educadores. Alguns colégios dos EUA praticamente aboliram a prática de ensinar a escrita cursiva (em que as letras são emendadas umas nas outras) através da legislação, como foi o caso do estado da Flórida e de Indiana que desobrigou este ensino em seus colégios, o que causou divisão de opiniões e muita discussão sobre essa prática. Com isso algumas questões eclodem e é interessante analisar se há reais diferenças entre escrever à mão ou por teclado e qual impacto isso tem no desenvolvimento e formação. 
 
Por enquanto não há evidências científicas que corroborem com a intuição dos professores por ser uma área muito nova a ser explorada, as pesquisas existentes até então estudam a linguagem e o cérebro do ponto de vista cognitivo e não as ferramentas que usamos. Porém, nessas pesquisas, encontramos algumas evidências que nos servem de indícios. Cientistas viram que áreas diferentes do cérebro são ativadas quando escrevemos a punho em relação à digitação, e não somente isso, a pesquisa viu também que o mesmo acontece quando visualizamos uma letra manuscrita. Um estudo de 2012 do periódico Neuroscience and Education, ao analisar voluntários que visualizavam letras escritas à mão, percebeu que áreas como o giro frontal inferior esquerdo (relacionado à fala) e o córtex cingulado anterior esquerdo (relacionado aos processos de tomada de decisão e atenção) são ativados, ao contrário de quando veem palavras digitalizadas. Até então, acreditava-se que a forma ou instrumentos utilizados para desenvolver a linguagem não tinha relação direta com a aprendizagem e essas diferenças não eram ponderadas. A chave que talvez se oculte nesses estudos é que a escrita manual bem como sua identificação propicie uma integração mais completa entre o pensamento e o conhecimento.

De fato, não precisa ser nenhum especialista para perceber os impactos da geração touch screen. Atualmente, a internet e seus meios estão tornando os vocabulários mais restritos e esse empobrecimento léxico soma-se à geração imagética tão bem resumida no provérbio “uma imagem vale mais que mil palavras”, em que um sedutor mundo de ícones e mensagens simplificadas é cada vez mais explorado. Claro que são inúmeras as vantagens dessas plataformas, como o enorme benefício de romper com a estrutura de McLuhan de emissor-receptor, incluindo a interatividade no processo. Porém a instantaneidade da modernidade propicia essa síntese em trazer tudo “mastigado”, agora ainda mais com o touch que enfatiza a comunicação por ícones, e é nesse ponto que a evolução passa a ser uma involução. Perceba que tudo acaba sendo influenciado por esse tipo de comunicação, em filmes, por exemplo, tendências pelos cortes rápidos, efeitos especiais e histórias óbvias com roteiros previsíveis acabam fazendo o maior sucesso nas grandes telas, enquanto os filmes mais antigos tinham a necessidade de serem mais coesos e profundos por não terem disponíveis os recursos de imagem de hoje. Já reparou como a arte contemporânea é bastante pautada na imagem e chega quase a ser abstrata? Esses são pontos que a linguagem interfere e muda a forma de pensar, porque os estímulos do mundo não te induzem a um exercício do pensamento e interpretação, tudo está pronto, as notícias já vêm com opiniões, trabalhos escolares podem ser feitos no Control C e Control V e a informação nos é dada como entretenimento e não como conhecimento.


Essas transformações fazem com que sejam pertinentes os estudos sobre a relação do ato de escrever com a aprendizagem. Veja só que interessante, uma pesquisa realizada na França em 2005, chamada de “personificação da percepção”, teve o intuito de entender um pouco mais as diferenças no aprendizado comparando os dois métodos. O estudo reuniu adultos alfabetizados e ensinaram palavras em idiomas desconhecidos por eles; um grupo estudou as palavras utilizando o teclado, enquanto o outro grupo foi pela via tradicional do papel e caneta. Semanas depois, o grupo que aprendeu manualmente ainda lembrava-se facilmente das palavras ensinadas enquanto o outro grupo havia esquecido completamente o que antes haviam aprendido. Estudantes costumam ter essa percepção em cursos e muitos optam trocar o notebook por um caderno de anotações justamente para fixar melhor a matéria.

Outro estudo publicado em 2010, pela University College da Inglaterra, identificou que jovens de 12 a 18 anos têm dificuldades para escrever textos longos, e o motivo é o excesso no uso da internet. Tudo isso colabora com a importância do incentivo não só da escrita como também da leitura, e mostra como a tecnologia vem afetando a profundidade da informação.

Nas escolas, cada vez mais cedo os meios digitais estão se tornando didáticos, porém há fortes indícios que isso é algo que deve ser agregado e não substituir o papel e a caneta. Voltar a escrever à mão não é a solução para tudo isso, mas deixar de fazê-lo pode agravar, e muito, este crescente quadro de simplificação e perda de sentidos. Isso está além da educação escolar. Para termos um panorama mais realista disso tudo, observe seu próprio cotidiano: com que frequência você utiliza papel e caneta no dia a dia? Tem gente que abandonou a escrita à mão de tal forma que não se lembra da própria caligrafia. Mas saiba que o exercício da caligrafia é muito rico para o cérebro, pois ele não envolve apenas a linguagem, ele desenvolve circuitos motores e visuais, escrever é muito mais complexo que se pensa. Começando pela geometria das palavras, ela é tão única que analistas forenses garantem não existir duas pessoas com a mesma caligrafia. Anne Magen, professora especialista em alfabetização da Universidade de Stavanger na Noruega, afirma que é insubstituível a unidade cerebral criada pela escrita em que mãos, olhos e atenção focam em um único ponto no espaço e no tempo. 
 
A verdade é que estamos cada vez mais habituados ao mundo digital e suas facilidades, somos preguiçosos. Este é um caminho sem volta e não é um problema desde que saibamos dosar e uma coisa não substitua a outra. Em tempos de redes sociais, a abreviação de palavras, hashtags, linguagem oral misturada à escrita e outras características que se esquecem das normas cultas são usadas à exaustão, reconhecer quando e como usar essa linguagem é essencial para garantir um maior poder de crítica, desenvolver ideias e conseguir ter compreensões mais abrangentes. A grande transformação que ocorreu a cerca de 5.000 anos atrás quando o homem começou a se expressar através da escrita em tabletes de argila pode encontrar sua regressão em pleno século 21 com a era da tecnologia. É comprovado que o ato de escrever desencadeia ligações neurológicas que nos permitem aprofundar o conhecimento sobre o significado das palavras (concebendo mais sentidos e enriquecendo nossa capacidade de se expressar e de interpretar), além do controle visual da movimentação da mão, a visão das palavras realizada no córtex occiptal, ativa os neurônios e a área motora de formas únicas. Comunicar-se é algo natural dos Homens, olhar a comunicação e linguagem pelo prisma da neurociência nos dá um incrível mundo de conexões que intercalam os sentidos de nossa vida social. As pesquisas mostram que a experiência muda o cérebro e o temor dos educadores frente aos novos hábitos é se esta tendência simplista da linguagem acabe se oficializando, como aconteceu nos estados americanos citados anteriormente que dispensaram a letra cursiva de sua grade.

A escrita é tão importante que já foi prescrevida como remédio. Pesquisas apontam os benefícios fisiológicos da prática que melhoram memória, o sono, além de estimular a atividade dos leucócitos (glóbulos brancos). Outros estudos mostraram que o hábito de escrever reduzia a carga viral de pacientes com HIV e até mesmo acelerava a cicatrização após uma cirurgia.De qualquer forma, é fato que escrever à mão ativa um conjunto de vias neurológicas que talvez não deva ser desprezada, e nós devemos mediar o uso de nossos gadgets nos atentando que muitas vezes nossa crítica à sociedade em sua forma líquida tenha a ver com os hábitos e a maneira com que “lemos” o mundo, nossa pobreza de interpretação pode ser a causa das ausências do contemporâneo.

Precisamos sim tocar nesse assunto, mas mais a fundo, de modo a dar significado à escrita e à leitura sempre com foco no desenvolvimento. Então, mãos à obra! Busque praticar e incentivar tanto a leitura quanto a escrita, somente assim preservaremos o sentido da palavra comunicação e poderemos avançar como espécie e indivíduos. 

Fonte: Obvious

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