Marisa
Midori Deacto*
A catalogação se difunde na era de Gutenberg. Uma verdadeira
galáxia, mas uma seção de biblioteca não se destina a compor o mapa celestial
de raridades
Os catálogos de
bibliotecas surgem do empenho de compilação, em um só livro, de todos os
volumes que uma coleção comporta. Dir-se-ia, uma biblioteca sem paredes.
A prática da
catalogação se difunde na era de Gutenberg. Uma verdadeira galáxia composta por
nomes de autores, títulos, formatos, notas biobibliográficas… nem sempre
apresentados nessa ordem e com os mesmos critérios de seleção, absorveu a vida
de muitos bibliotecários e bibliófilos.
Todavia, apenas uma
seção da biblioteca não se destinava a compor este mapa celestial de raridades.
As bibliotecas tinham
seu inferno. Os livros repousavam em espaços reclusos, nos desvãos das
estantes, ou em salões instalados por detrás de paredes falsas, ou ainda sob o
rés do chão das mansardas. O inferno das bibliotecas desafiava a imaginação dos
arquitetos mais engenhosos e a fantasia dos proprietários mais endinheirados. O
século 18 é pródigo nessas assimetrias e ilusões arquitetônicas. A noção mesma
de intimidade conduz nobres e burgueses às recepções reservadas no boudoir e às
leituras na solidão desses espaços. Imagens de leitores e leitoras do grande
século francês testemunham bem este dolce far niente literário.
Adentrando o inferno,
o que encontramos? Pensemos na cena célebre do primeiro encontro de Julien com
Mathilde. A bela heroína de O Vermelho e o Negro adentra furtivamente na
biblioteca do pai através de uma passagem secreta. Deslumbrado, o jovem
provinciano observa Mathilde em sua incursão perigosa, enquanto seus dedos
ligeiros percorrem as obras completas de Voltaire. Há, no entanto, títulos mais
frívolos que fariam enrubescer os dois jovens. Entre memórias ardentes, contos
de fadas eróticos, jogos rocambolescos, ensinamentos sobre a arte de amar, nada
escapa aos autores, leitores e censores.
A era do capitalismo
de edição fez do inferno da biblioteca um negócio providencial. Em 1852, a
polícia apreendeu 12 mil volumes em
posse das Edições Garnier. Entre os títulos: A Educação de Laure, Amores e
Galanteios das Atrizes, Libertino de Qualidade, Messalina Francesa, Os Males da
Virtude.
Inferno para uns,
paraíso para outros. Arte da dissimulação de autores consagrados, entre
Stendhal, Musset, Gautier, Maupassant, Cocteau, Aragon, para ficarmos apenas
entre os franceses contemporâneos, o gênero foi responsável pelo aparecimento
de edições bem cuidadas, verdadeiras obras artísticas, síntese do que de melhor
havia em termos de encadernação e ilustração (finas gravuras em metal, ou no
Oitocentos, belas litografias), sem dispensar, é claro, a boa tipografia
impressa sobre papéis nobres. Mais do que a erotomania, a economia da
literatura erótica se tornou objeto da bibliomania.
*Professora da ECA-USP. Autora de O Império dos Livros:
Instituições e Práticas de Leituras na São Paulo Oitocentista (São Paulo:
Edusp, Fapesp, 2011, 448 pp.). Prêmio Sérgio Buarque de Holanda da Fundação
Biblioteca Nacional, 2011; Prêmio Jabuti, 2012.
Para ler mais, http://bibliomania-divercidades.blogspot.com.br/
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Fonte: http://www.revistabrasileiros.com.br
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